Conto "Naquela Noite Choveu..."


            Da janela do quarto fitava o horizonte nebuloso, as árvores cambaleavam a um lado como alguém que não possui domínio da própria vida, que a qualquer instante pode ser levado e arrancado da terra para sempre e suas raízes nunca mais se firmariam. Por um desejo de evidenciar este fato que não fora cumprido, resolveu fechar a janela, a chuva estava invadindo o quarto, aguçaria então os ouvidos a escutar o tilintar da chuva no telhado  escorrendo pelo chão, a ventania agitada e impetuosa sobre as árvores, o mais delicioso de se ouvir seria os relâmpagos, evidenciar este fenômeno natural causava-lhe uma sensação estranha próxima e intima mas pouco compreensiva.
            Adormecer naquela tempestade arrebatava-lhe os sentidos a participar daquele evento majestoso e enquanto conectava-se com as forças naturais, seu corpo adormecia lentamente – Bendita noite para se dormir – pensou.
            ―Cássia acorde! Acorde menina! Embora seja domingo você não pode passar a noite inteira dormindo e o dia também, levante, a chuva causou graves danos ao redor da casa. Seu pai e seu irmão já estão lá fora.
            Presenciar aquele belo anjo de quatorze anos acordar era uma graça divina concedida àquela velha senhora de mais de setenta anos. Aqueles grandes olhos expressivos abrindo-se em meio àquele sorriso de canto de boca que apenas se concede na juventude, silenciava com sua voz:
            ―Bom dia mãe Maria. Já estava levantando, queria apenas curtir mais um pouco esta cama. A noite foi gloriosa para viver. E o dia para dormir.
            Da janela avistava os homens da casa em atividade, sua ingenuidade e apreço pouco sensível por detalhes, os tornavam os seres mais simplistas  felizes da terra e com essa característica forte enxergavam apenas o que estava ao alcance dos olhos e modificavam apenas o atingível. Teriam grande prazer em tentar organizar os danos que a natureza causara, poderiam descarregar suas energias e exercitar seus corpos.
            Gostava da presença de Emanuel seu pai, homem robusto de uma sensibilidade refinada, cultivava um jardim de uma simetria impecável, por raras vezes o via em alteração de comportamento e quando acontecia, era sempre regado de um bom vinho, único luxo de homem o qual se permitia. Seu humor sóbrio e sábio carregado de uma nostálgica alegria confiava a todos uma segurança. Todos amavam aquele bom homem, principalmente o irmão mais velho, três anos e alguns meses, mas aparentava possuir mais, certamente adquiriu as qualidades genéticas de Emanuel, de um modo rejuvenescido e aperfeiçoado, habilidoso com o canivete que ganhara, construía pequenos animais de madeira para decorar a estante de mãe Maria que sempre os recebia com grande admiração.
            A chuva em seu aspecto natural confundia. Sempre uma conciliadora e atrevida, uníamos para reconstruir seu bailar noturno. Um ambiente magnífico o daquela manhã, todos estavam em casa, incluindo os vestígios da chuva. A terra agora fogosa poderia preparar-se para seu estado fértil, afinal sua companhia viria com mais frequência motivar e dar-lhe as felicitações.
            Embora criativas e exuberantes, as flores de Emanuel não reagiam com a chuva, aquela beleza apática se desfazia facilmente, foram dias de trabalho! Um atrevimento desfazer-se. Deveriam permanecer por um período mais longo a exalar seu cheiro bom, isso deixa o autor do espetáculo muito feliz. Orientava a todos a retirar as flores apenas se necessário e dava as demonstrações básicas para não feri-las e conserva-las num vaso, pelo mais longo prazo de vida.
            Fez sinal com a mão à Cássia para que se juntasse a eles, estariam então completos e realizados com aquela brevidade momentânea de domingo em casa. Faria uma bela torta fria que aprendera vendo televisão, o prazer não seria em vê-la pronta mas sendo devorada com entusiasmo por aqueles dois, principalmente eles, que sabiam festejar coisas simples e majestosas. Aquele dia estava perfeito, claro e nostálgico para uma brevidade familiar curtirem suas indiferenças e sorrirem das bobagens.
            Sem pressa para o pedido do pai, preferia observar da janela seu jeito patriarca de semblante cristão usar o gadanho. Afinal, iria mais ouvi-lo que trabalhar, era apenas a presença de sua menina superprotegida que o encantava tanto, a queria por perto, já que estava um pouco ocupado demais com aulas ministradas que dera no final do ultimo mês.
            --- Venha logo --- disse Emanuel --- Já tomou o café? Encerrava a pergunta com um sorriso e continuava com o gadanho. O amor paterno...
--- Precisarei de sua ajuda depois Cássia --- disse mãe Maria.
--- Acho que sei para o quê!
--- Agora se apresse para ir aonde seu pai, sabe o quanto é importante para ele tê-los por perto. Veja, está vindo para cá!
--- Vejam o que achei, acho que pertence a você mãe Maria.
--- Pelos céus! É meu “terço”, já havia procurado por semanas e não lembrava onde estava, tenho muito apreço por este que fora produzido por sementes de pau-brasil. Devo tê-lo deixado cair de dentro da Bíblia após de rezar no jardim, obrigado meu querido.
Mãe Maria não aparentava a idade que tinha, conhecedora de ervas medicinais, as utilizava nas medida certa e para todos os males o seu conhecimento excedia a dos livros, seu humor jovial produziam um ar de tranquilidade na casa, não havia razões para preocupar-se com seu estado de saúde, ao contrario ela promovia a de todos na casa. Estevão em suas aventuras pela chácara às vezes feria-se , e nem por isso apresentava medo das consequências, pois mãe Maria gentilmente os admoestava e suas feridas ungia com óleo e unguento para sara-las. Cada um exercia a benevolência de suas virtudes e dons na casa e na vida, assim, Cássia a todos observava e nada era despercebido pelo seu olhar expressivo e apaziguador, olhar daqueles que dizem que está tudo bem.
―Bem, já que estás aqui, vamos tomar café juntos.
―Obrigado papai.
―Tenho algo para você. É um livro que trouxe de uma recente coleção que a escola recebeu, separei o da civilização egípcia, apresenta a história de alguns faraós. Gosto de vê-la lendo, até parece que não é para agradar.
―Mas não é! Você sabe.
Um orgulho, o escritório que ficava próximo à sala de estar, alguns armários envernizados sustentava bravamente uma pilha de livros, limpos e insuportavelmente sob os cuidados da menina da casa que diligentemente os amava e os carinhosamente os separavam por gênero. Cássia e Estevão causavam orgulho ao pai, quando estavam no escritório, por raras vezes os via cada um com um livro de gênero e linguagem diferente, um lia fragmentos de seu livro e o outro continuava. Riam e riam pelas horas que passavam às vezes regados pelo silêncio da leitura individual.
A monotonia, habitante da casa, querida e desejada completava a pequena família em sua modesta chácara num bairro pouco afastado do centro da pequena cidade. Arborizada e rica em suas generosas arvores de estação engrandecia o ambiente.
Após o almoço já à tarde os três degustavam o prazer da leitura no escritório, serenos e pacientes se desprendiam de matéria física e em êxtase juntos e isolados em mundos distantes, alimentavam a individualidade não exposta ao mundo, tratavam com zelo o eu reprimido e cativo em documentações de seus sentimentos que unicamente os próprios possuíam o acesso, gerando traças e mofo no organismo frágil e doente que logo se desfaleceria com as dores ocultas de seus atos. Percebiam que não estavam ilhados quando mãe Maria interrompia generosamente o culto de adoração narcisista, com seus biscoitos quentinhos com suco das frutas da estação, conectava-os novamente com laços fortes umbilicais e divinos propensos à existência familiar. Mãe Maria possuía a benevolência confiada às mulheres.
Ler, comer e conversar. Comer... conversar e rir...
A vida os agraciava naquele episodio frequente dos finais de semana e de raras noites nos feriados. Cássia fitava os olhos em Estevão, sua beleza masculina tão expressa e natural se aperfeiçoava na companhia de um bom pai, homem exemplar e disciplinado que dera bons livros aos filhos. Estevão  falava glorioso de sua participação na sala de aula e de seu bom desempenho nas atividades físicas, saúde era o cheiro que dele exalava... Seu cheiro...
            O dia havia sido sublime! Trabalho, leitura, paz, o cuidar e o zelar pela graça e harmonia familiar. Os indícios seriam de mais uma noite de chuva, era melhor ficar em casa. O dia de pós-chuva agraciado com uma noite de chuva. Que maravilha estar em casa. Pensou Cássia...
            E naquela noite também choveu...
            O findar de um perfeito dia, com chuva! --- pensou Cássia.  O não sair e concluir o dia sem ausentar-se de casa não causava impacto em nenhum integrante daquela família. Os planos da noite não foram interrompidos, alterados apenas, pela força maior que a todos abençoava. Agora sem atividades e fardos poderiam conversar sobre os temas mais filosóficos da vida. A começar pela admiração da descrição da noite, em Cássia a sensação misteriosa do corpo feminino e o exalar sensualidade que a este sexo é determinado, atraia a atenção de qualquer home, seu corpo emanava as primícias de um primeiro amor, os dons e segredos da existência humana, naturalmente desenhada, num único corpo habitava os anseios e as fontes de prazer. Sim, um corpo jovem habitado pelo Amor, uma fruta não madura que pela cobiça poderia ser arrancada do galho antes da estação certa.
            Sozinha na sala tocava com os dedos os lábios e imaginava com seria ser beijada... Interrompida pelo irmão com o jogo de xadrez nas mãos insistia em com ela jogar, pois já não conseguia dormir como assim estavam Emanuel e mãe Maria. Resistia apenas pelo prazer de tê-lo insistindo, provocava-lhe em seu limite, para no momento exato do sim, causar-lhe a grande alegria de conquista que os homens pensam possuir. Assim agia com frequência, conhecera razoavelmente as pessoas, apenas o suficiente para divertir-se sadicamente. Enfim, o jogo de xadrez. Ganhar do irmão não seria tão simples, como boa jogadora conhecia os truques e atrevimentos do adversário. Razão  para criar estratégias defensivas? Não, mas atacar discretamente as fraquezas e falhas evidentes e não comentadas que o irmão possuía. Empatava o jogo quando queria, mas se permitia o prolongar do tempo com o jogo, era divertido a concentração dele, e suas mãos. A favor do irmão, a concentração, um a zero, dois a zero, agora se soma a distração de Cássia.
            Cássia olhou pela janela da sala e viu a água da chuva escorrer pela vidraça, olhou o rapaz com os olhos no tabuleiro e as mãos, as mãos conduzindo aquela peça, sua mão alva e limpa lembrava a perfeição da natureza em movimento diante de seus olhos, desejou tocá-la, pensou em seus lábios serem tocados...
            ―É sua vez! Jogue logo! Se falhar, xeque mate. Foi xeque mate, para alegria de Estevão.
            ―Não quero jogar mais.
            ―Apenas  mais uma partida. Suplicou Estevão sem êxito.
            No sofá com a televisão ligada, as duas ingênuas almas acompanhavam a programação noturna, os únicos sons e diálogos era o da TV, a iluminação vaga com os jovens acordados pensavam àquela altura cada um no seu próprio corpo, Cássia exalava sensualidade discretamente por cada poro de seu exuberante e virginal corpo, involuntária a própria natureza exprimia em si a verdade de sua existência, em vestes mais confortáveis desejou ir ao quarto sentir aquela estranha sensação sozinha, e sentira que deveria sair, um medo de suas ações e de seu potencial feminino, mas com Estevão ao lado seria mais difícil mover-se, aproximou-se então do corpo dele com se estivesse com frio, queria um corpo quente, um calor masculino perfeito para os dias de chuva. Abraçada a ele inclinava sobre aquele peito nu seus longos cabelos pretos e seus braços perfumados e delicados aquele invencível corpo. Estevão era desejável, precisava ser tocado com prudência aquela imagem preciosa para não quebra-la, sentia em suas mãos os contornos do corpo quente dele, os corpos agiam, reagiam e alteravam seu funcionamento lentamente sentindo uma profunda curiosidade de explorar com as mãos o corpo que dizia: Sim ... Amavam-se. Flores da juventude agitada pelo vento.
            A chuva perturbava o sono de Emanuel que entristecido pelo acordar à noite, vagava entre as lembranças de sua amada esposa, companheira dos prazeres do matrimonio e da cumplicidade do alvorecer dos corpos, seus seios firmes e volumosos agitados sobre ele quase que diariamente o cortejava e o embebedava com sua lascívia, esquentava-lhe a alma e o amor que os homens precisam. Brevemente cederia aos amores de uma outra mulher, precisava alegrar seu pobre coração masculino que vagava nas lembranças de uma esposa sepultada. Seria impossível permanecer na cama, beberia um café, fumaria um cigarro, sempre à noite e sem deixar vestígios para mãe Maria ou os filhos e se trancaria no escritório a ler. Conhecia a casa e andaria mesmo no escuro da noite, os moveis permaneciam no mesmo lugar a décadas, igualzinho o desejo de mãe Maria que não gostava de mudanças. Observaria a chuva pela janela da sala à base de seu cigarro importado, seminu, como andava pela noite na casa.
            A uma distância da janela da sala, iluminada unicamente pelas imagens da televisão a um som quase desprezível, uma imagem no sofá roubava-lhe os sentidos e razão. Seus filhos, os únicos filhos devorando-se em lascívia como a amantes no leito de uma prostituta, suados e desejados emanava dos corpos o cheiro da perversão sexual e à contrações do corpo esqueciam quem eram, e o sangue virginal ainda quente revelava a violência que os conduziam ao extremo dos desejos em êxtase. E pela razão repudiava a cena atônito e ao primeiro sinal de desejo que agora o despertava recolhia-se ao seu quarto sem dar a perceber ali a sua presença e vagou pela cama acordado, imaginando o fim do espetáculo carnal humano, ouvindo unicamente o som da chuva no telhado.
            Naquela noite choveu... choveu...
            Os danos vieram ao amanhecer
            O amanhecer ... No amanhecer ...

            De domingo.       

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